sexta-feira, 24 de abril de 2009

A política do concreto armado.

Hoje publico um texto que fiz para que, talvez,  fosse publicado em um site de arquitetura. Como a coisa está se encaminhando para uma não publicação, seja pelo teor do texto, seja pela censura arquitetônica, seja pela qualidade da minha escrita, sabe-se lá, publico aqui mesmo. Se sair no referido site aviso aqui também.
Trata-se de uma crítica à política dos paredões que estão sendo erguidos em favelas cariocas, tema ao qual me debrucei em meu mestrado, há uns quase quatro anos. Difere um pouco do tom (e do tamanho) usual dos textos deste blogue - assim grafa Saramago - mas, afinal de contas, de que vale um blogue com um único estilo de abordagem...talvez a tudo, salvo à representação da cidade.
Aproveito a deixa para justificar a minha ausência nestes últimos meses, mas minha tese está sendo parida e não estou encontrando energia para depositar neste espaço...espero que isso logo mude!

A POLÍTICA DO CONCRETO-ARMADO: REFLEXÕES URBANÍSTICAS SOBRE OS PAREDÕES QUE CIRCUNDARÃO AS FAVELAS DO RIO DE JANEIRO

 

Por Cláudio Rezende Ribeiro [1]

O governo do Estado do Rio de Janeiro acabou de desmentir o mito de que os territórios populares da cidade do Rio de Janeiro, também conhecidos como favelas, são locais onde não há a presença governamental. De acordo com o senso comum, as favelas seriam territórios separados da cidade formal, uma espécie de corpo estranho no tecido urbano, onde a ilegalidade impera principalmente pela ausência do Estado nestas áreas.

Mas eis que, contrariando tudo que se diz, propaga-se, dissemina-se e até se acredita a respeito do assunto, o Governo do Estado do Rio de Janeiro (doravante GERJ) demonstrou que essa não é a verdade, ao menos não é a verdade desta gestão. Mais ainda, contrariando a tradição social e política brasileira, o GERJ desmontou este senso comum não apenas no reino das idéias, mas de ações concretas, inclusive com valores relevantes para calar a boca daqueles que medem projetos governamentais pelo custo: segundo a Folha de São Paulo (perdoem-me a fonte, mas foi onde encontrei o dado [2]) a ação custará 40 milhões de Reais aos cofres do GERJ, para alegria da empreiteira vencedora que vai conseguir manter seus lucros em margem bastante confortável em uma época de crise, vivificando um keynesianismo meio zumbi.

Sei que muitos estão indignados com as palavras ditas acima. Ora, dirão, este senso comum da ausência do Estado nas favelas já foi há muitas gestões desconstruído posto que a todo momento este envia àquelas áreas diversos representantes institucionais responsáveis pela manutenção da segurança pública, a assim chamada Polícia Militar, que não cansa de demonstrar em diversas ações diárias que, sim, o Estado, com todo seu poder está presente naquelas áreas. De modo algum permitiria a ação de uma mão invisível liberal nestas áreas, como comprovam os tapas levados por diversos inocentes e culpados por mãos nem um pouco invisíveis, aliás, parece-me que são mãos manchadas de diversos tons entre o vermelho e o roxo. Entendo a indignação, fui injusto e imparcial ao classificar a ação do GERJ como inovadora, mas me referia mais especificamente àquilo que os governos e a grande imprensa costumam assumir como suas ações, ou seja, obras. E estas, obviamente, são difíceis de se encontrar nas tais regiões... Pelo menos eram até agora!

Fora o PAC, que é ação do Governo Federal e não cabe aqui entrar em detalhes no momento, nada de novo ocorria nas favelas cariocas até o anúncio da grande obra milionária: os eco-limites.

O ineditismo da ação, porém, está em sua concretude, não em sua idéia. Há alguns anos a Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (doravante ALERJ) fez proposta semelhante de erguer um muro em torno Favela da Maré, em nome da segurança dos cidadãos de bem, ou seja, os que possuem automóveis e trafegam pela Linha Vermelha e em detrimento dos pobres, que nem mais poderiam vender diversos gêneros alimentícios àqueles cidadãos em seus engarrafamentos diários [3]. A ação foi proposta por aquela casa e vetada pelo GERJ de então, sem nenhuma consulta, obviamente, aos moradores do local. Obviamente que isso não impossibilitou a revolta dos mesmos que prontamente organizaram panfletos, manifestos e protestos contra o possível enclausuramento, mostrando para quem quisesse ver que os pobres são detentores, pasmem, de consciência política e de capacidade de organização.

Mas chega de cinismo! Aliás, devo me justificar, certamente este cinismo tem fundo em algum conflito psicológico entre minha formação genética que me fez destro e meus pensamentos e ações sinistros que em alguns momentos se reflete desta forma, ou seja, o cinismo aparece certamente quando meu lado destro fala mais alto como numa tentativa de me tornar mais governista, tipo a grande imprensa, e deixar de ser crítico, daí a necessidade de ironia, caso contrário minha mão direita assume sua invisibilidade de vez e impossibilitaria a conclusão deste texto pela dificuldade datilográfica.

 

DAS CONTRADIÇÕES POSSÍVEIS ENTRE O CAMPO URBANO E O AMBIENTAL

 

Oportunidade como esta não pode ser desperdiçada por nós, intelectuais, pois são situações privilegiadas onde a crítica pode se aproveitar para demonstrar sua capacidade de transformação de pensamento e gestos, além do mais, omitir-se num momento como este é ação grave.

A primeira coisa a ser colocada em debate aqui é a justificativa do muro como sendo interessante para os moradores das favelas. Geralmente esta justificativa é dada por “não moradores” destes locais, que não costumam ter voz nem ação ativa em nossa organização democrática. Mas, enfim, o que se quer expor aqui é que a justificativa se pauta em nome da convivência pacífica com muros. Diversos argumentos super-afinados espalhados por inúmeras reportagens jornalísticas apresentam a tese de que muros existem em condomínios, em casas, e isto seria, além de normal, aceitável, desejável e de fácil de convivência.

Se também não posso falar em nome dos favelados, falo em meu nome: não me dou muito bem com muros, grades e afins. Não gosto das praças do Rio de Janeiro que são cercadas, não gosto que as entradas de diversos prédios, inclusive o meu, possuam grades, que, via de regra, são feias – a única grade bela do mundo está em Salvador, no Campo Grande, desenhada por Carybé. Não me agrada tampouco o prédio em frente à minha janela, que é uma espécie de muro que não me permite ver nem um pouquinho da rua. Mas entendo quem goste de muros, e é por isso que eles escolhem muitas vezes morar em condomínios, isto costuma ser um a opção, não uma imposição. Ora, os pobres do Brasil nunca foram consultados em relação a quase nada e sempre se viraram sozinhos, sem apoio do Estado, para tudo, principalmente para moradia, acredito que se desejassem muros, já teriam os feito, e com menor custo que os atuais, obviamente. Soa-me assim um tanto quanto arriscado dizer que viver cercado por muros é coisa aceitável, principalmente quando quem viverá murado será o outro.

A grade do Campo Grande em Salvador, exceção que confirma a regra da feiúra de tais elementos (acervo pessoal do autor).


Outra coisa a se destacar é o argumento ambiental tantas vezes utilizado para uma ação em ambiente urbano, que autoriza nomear o paredão – pois o muro está mais para um paredão – de eco-limite. É bom que os urbanistas abram seus olhos para este tipo de confluência de pensamentos e de ações. Todos devem abrir os olhos, aqueles que nunca pararam para pensar nisso devem fazê-lo para não cair na ingênua aceitação deste discurso, e aqueles que o proferem devem ter consciência de que lado político estão quando dizem tal coisa, para não se enganarem quanto a possíveis reações críticas e práticas futuras.

Esta mescla de discurso ambiental e urbano pode ser bastante saudável. Traz, sem dúvida, inúmeras contribuições progressistas para o debate como a questão de um melhor uso da água, do solo, de um melhor desenho urbano voltado para diferentes fontes energéticas e renovadas críticas sobre as matrizes de transporte contemporâneas, para ficar no mais óbvio. Há inúmeros ganhos. Mas não se pode descartar uma aproximação crítica deste novo pensar. Deve-se levar em conta que o pensamento ambiental está carregado de alguns vícios que foram a duras penas afastados do pensamento urbano ao longo do século XX e que retornam agora com outra roupagem.

No início do século passado houve a conhecida onda do higienismo, quando as propostas de reforma urbana, sempre pensadas e realizadas de cima para baixo – isso nunca mudou – eram orientadas para uma limpeza da cidade em nome do combate a doenças que se espalhavam com mais força em certas áreas devido ao rápido e precário crescimento do tecido urbano. Acontece que as áreas doentes, que deviam ser extirpadas como um câncer, eram as áreas pobres, sempre mal vistas como sujas. Este tipo de pensamento desencadeou ações que se tornaram impensáveis décadas mais tarde, graças a muita luta popular, como as remoções de favelas. A lógica era: há lugares sujos, possíveis focos de doença – isso faz mal à cidade – vamos limpar do mapa estes locais.

Não se quer aqui reduzir o urbanismo do início do século passado (aliás, originado em finais do XIX) apenas neste tipo de ação. A ele deve-se também a vulgarização de parques urbanos, por exemplo. Mas há em sua lógica aspectos que não devem ser esquecidos.

Encarava-se a cidade como um corpo que deveria ser saudável. Note-se bem que não se levava em consideração que as pessoas que moravam naqueles locais considerados doentes também faziam parte deste corpo. Quem executava esta política cheia de diagnósticos e outros termo médicos, ou seja, esta medicina social, sabia bem a quais classes deveria enviar mais tarde seu boletim médico satisfatório. Os pobres estavam fora de qualquer decisão e se tornariam alvo de inúmeras remoções, com imensas perdas sociais, em nome de um discurso bem colocado de limpeza, higiene e saúde.

Muita movimentação e luta popular levou ao descrédito tais tipos de ação autoritária no campo urbano. Porém, hoje algo similar, com nova retórica, volta a dominar o pensamento urbanístico. E é isso que possibilita se pensar propor e construir muros que cercam apenas a população pobre em nome de um discurso ambiental. Deve-se ser cauteloso com a tal “causa verde”, pois esta, aos poucos, está trazendo de volta um pensamento anti-social em relação à cidade. Se antes eram as doenças e a sujeira que comandavam os médicos urbanos, hoje é a paisagem e o verde que comandam seus estetas. Pois me parece muito mais um discurso estético isso que se faz hoje nas favelas, ao invés de se extirpar um câncer, hoje se quer conter o avanço de uma gordurinha indesejada. Ao invés de se resolver, primeiramente, os problemas sócio-ambientais existentes dentro das favelas, como a ausência de saneamento básico, de postos de saúde, de bibliotecas, arborização e por aí vai, quer se gastar fortunas no impedimento da propagação dos pobres, deixando em condições mais precárias espaços urbanos que, muito pelo contrário, necessitam de melhorias. Aliás, com a construção dos muros, obviamente, a verticalização se intensificará nas favelas, piorando ainda mais as condições urbanas e ambientais dos estreitos becos existentes nestes espaços.

Enfim, é necessário que se pense seriamente na aceitação de tais atitudes, é preciso que todos os professores, alunos e profissionais da área urbana, enfim, todos envolvidos neste campo se posicionem sobre este assunto. Seja a favor ou contra os argumentos utilizados, p que me soa mais importante é que haja clareza da posição assumida. Parece-me inadmissível, por exemplo, encontrar justificativa para tais muros e ao mesmo tempo se reclamar das mazelas de uma cidade cada vez menos democrática. São ações incompatíveis! Voltar a crer em um discurso que naturaliza situações sociais é regredir, é ir contra a luta popular histórica que conseguiu denunciar e criar uma consciência de melhoria dos locais de moradia dos pobres, que, aliás, não necessariamente permanecerá como tal, já que não acredito na permanência natural e eterna da situação dos pobres do mundo.

E, por último, mas não menos importante, é bom que se evidencie também a possibilidade real deste discurso ambiental mascarar a continuidade da política de extermínio que se pratica nos morros e favelas do Rio de Janeiro, num movimento que une um Muro (ou Paredão) e a Polícia Militar (e milícias e afins) criando uma ação do Estado que se pode chamar de, voltando à ironia, política do concreto-armado.

 


[1] Mestre em Planejamento Urbano e Regional. Doutorando em Urbanismo pelo PROURB-UFRJ.

[2] Disponível on-line em: http://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u550240.shtml e também em http://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u544553.shtml.

[3]Sobre este assunto me debrucei durante meu curso de mestrado. Disponível em: http://teses.ufrj.br/IPPUR_M/ClaudioRezendeRibeiro.pdf.