Quando uma criança dá seu primeiro
passo, ela experimenta uma sensação de liberdade que se repetirá a vida
inteira. O risco de cair é grande, mas a criança sabe, porque elas já sabem
muito, que maior é o risco de ficar parada.
A infância não se encerra na vida
de criança e tampouco é algo exclusivo dos indivíduos, mas pois há também
infâncias sociais. A infância enquanto sensação de descoberta, de risco e
aprendizagem é sempre algo conturbado e maravilhoso, e a maravilha nos espanta
porque é também um pouco assustadora.
Mas onde mora o susto? O susto
mora no conflito de maravilhas. E foi isto que começou a ficar mais claro
ontem: a maravilha de uns e enquanto anulação de outros. Anulação violenta e
covarde, assustadora, intimidadora e estúpida. Mas existente. É inegável: a
estupidez existe, a canalha existe, o nacionalismo violento também. A
manifestação de ontem revelou para todos que estão vivendo a infância da
ocupação dos espaços públicos, a infância da retomada da cidade, um obstáculo
que pode fazer tropeçar: um comportamento obscuro, agressivo e intolerante, o
tão falado homem cordial que surge para reprimir pois não sabe discutir. Não há
diálogo na cordialidade, há adversários, há inimizades, há apenas anulação e
violência, não existe espaço para conflito. Mas este espaço cordial é um
obstáculo que deve ser superado: mais arriscado é ficarmos parados e sabemos
isso desde pequeninos!
Que fazer? Dentre diversas ações
possíveis, parece ser importante um entendimento imaginativo que deve pautar
todas elas: as coisas não são, elas estão! A rua não é. A rua está, como nós,
como o corpo social, em processo de (re)fazimento. A rua, se é algo, só pode se
apresentar enquanto um vir-a-ser. A disputa está posta pela transformação do
que aí foi colocado e revelado ainda que amargamente.
Pior era antes quando só havia,
praticamente, o silêncio e as vozes dissonantes corriam isoladas e mais
ameaçadas. Portanto, não se deixem abalar com as interpretações fatalistas que
dizem: haverá golpe pois estamos repetindo 64. Acreditar neste discurso é tão
perigoso quanto dar o golpe. A rua ainda está (e sempre estará) em disputa,
temos que aprender a lidar com o caldeirão social que se apresenta e
transformar este caldeirão ou estaremos, sim, fadados a respectivos golpes de
intolerância... Se 64 levou a golpe, e se antes já houve outro, o que fazer
para evitá-lo agora? O que fazer para evitá-lo em nosso imaginário? A primeira
coisa é esquecer a idéia preconcebida de que a rua só seria maravilhosa se
todos protestassem juntos pelas causas da esquerda e, portanto, as
manifestações atuais devem ser evitadas pois levariam à fatalidade. Esse é o
maior risco, pois abandonar a disputa é o pior, é construir a própria derrota.
Conseguiremos levar às ruas as causas justas e isso será incrível. Mas não vai ocorrer
sem uma construção desta justiça. O direito à cidade está em jogo e ele só será
consolidado se exercido enquanto tal: conflituar a cidade é reforçar a
democracia e a liberdade, não recuemos para a cordialidade. A democracia se
constrói no conflito e a cidade só existe enquanto realização da democracia
(que não é a democracia do voto apenas, mas a democracia da autonomia).
Portanto, agora a porta está
aberta, temos que ocupar os espaços com sabedoria, com justiça, com rapidez.
Vencemos a primeira barreira, chamamos todos para o debate, e eles vieram!
Fomos nós que chamamos, foi a esquerda, pois ela é quem acredita no debate!!
Nunca se esqueçam disso: as manifestações são uma conquista da esquerda, não as
abandonemos jamais! Mas não se iludam: se ter debate é uma vitória, isso não
significa a garantia de vitória no debate.
Ontem vimos como tomar partido é
difícil, como é perigoso; medimos algumas fraquezas, mas, principalmente,
mostramos a força que há na rua. Conquistemos o que está em disputa, nada foi
ainda decidido!
Tomem partido!
E, para aqueles que acham que
antes dos protestos estava tudo melhor, saiba que você, meu caro, já foi
derrotado, essa era já passou... A rua é um vir-a-ser, que ela seja um
vir-a-ser justo, livre e, obviamente, belo!
(imagem feita pelo #ocupânciaUFRJ com Banksy e Quino dialogando: bela como a rua!)