quarta-feira, 20 de junho de 2012


A greve como renovação do espaço público universitário

Uma contradição que deve ser superada a respeito do espaço da universidade pública brasileira reside na concepção que se faz dele, isto é, no imaginário, no senso comum que se produziu sobre sua dinâmica de reprodução na qual o caráter autônomo e coletivo seriam a regra. Talvez devido à existência de inúmeros momentos combativos e de resistência que povoam a memória coletiva com ações de estudantes e professores universitários em momentos históricos de luta, disseminou-se a idéia de que o cotidiano do espaço universitário seria a reprodução destes momentos de exceção numa eterna luta constante pela conquista da autonomia democrática e cidadã. A universidade pública seria o baluarte social de resistência ao mercado. Não que o cenário não possa vir a ser este; até seria extremamente positivo se cada aula se tornasse um ambiente de condução política de realização do caráter público que reforce a emancipação contínua dos estudantes e professores. Mas, pelo contrário, esta representação do espaço universitário não encontra eco nem em seu espaço de representação e muito menos nas práticas sociais que lhe integram.
O espaço da universidade revela a contradição das práticas sociais ali reproduzidas, como ocorre com qualquer outro espaço. Ao caminhar, por exemplo, pelo edifício da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UFRJ que abriga, além deste curso, a Escola de Belas Artes, o Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional e a Reitoria da Universidade, percebe-se claramente a cisão entre a imagem consolidada e sua realização concreta. Os espaços de graduação, aqueles destinados à maioria dos estudantes e futuros profissionais, encontram-se em um lento processo de transformação que evidencia ao mesmo tempo inconstantes melhorias atropeladas por uma, cada vez mais acelerada, degradação. Já nos espaços das diversas pós-graduações ocorrem outros cenários que, mesmo que não sejam os ideais, demonstram uma diferença gritante na espacialidade da universidade brasileira. Da existência de ar condicionado, de computadores, de espaços de reunião e orientação adequados, passando por uma movimentação constante de professores e estudantes em tempo integral, estes espaços revelam, por oposição, a fragilidade das salas quebradas da graduação, com suas carteiras velhas, sem instalações de mídia ou rede digital e com poucos professores para muitos alunos... O espaço universitário concretiza uma das mais profundas contradições que impedem que aquele imaginário do espaço público existente se realize de forma concreta: a carreira docente.
A forma como esta prática social, a profissão de professor universitário público, tem se construído nas últimas décadas simula a existência de uma meritocracia que premiaria as “produções de excelência”. Ora, este formato mina a possibilidade de manutenção da diferença posto que o critério do que é excelente representa uma construção social que aponta na direção daquilo que se produz segundo os critérios da reprodução social hegemônica. A excelência, na maioria das vezes, constrói-se em forma de reprodução e não de transformação já que a própria existência do excelente pressupõe seu outro, o pior (que é também o diferente), numa clara cópia da lógica social do mercado. Assim, trata-se não de conteúdo da carreira, mas da forma como ela é construída. A carreira docente é formatada de maneira a resultar esta espacialidade da segregação acadêmica.
Esta característica traz um triplo impacto à prática de ensino que ajuda a explicar seu reflexo no espaço e a partir dele. Primeiramente, se o critério de excelência se baseia na lógica pré-existente do mundo, há pouca possibilidade de realização de algo que contradiga a realidade social na qual a universidade está inserida, esta ilusão da meritocracia é bastante conhecida e não precisa ser aqui repetida a exaustão. Quem define o que é meritório sempre terá mérito. Em segundo lugar, dado que a sociedade capitalista se mantém a partir da centralidade da lógica do mercado que se baseia na competição como motor de melhoria, é óbvio que o espaço universitário irá corresponder ao espaço da competição onde a diferença se converte, na maioria das vezes, em inferioridade, criando espaços maravilhosos que se destacam ainda mais pela opacidade dos seus concorrentes. Em terceiro lugar, a concretude do mercado na carreira do professor universitário converte seus colegas em competidores muitas vezes impedindo importantes colaborações numa clara tiranização da educação pela lógica competitiva da economia “não política”, produzindo um espaço onde não é a troca nem a experiência educativa de aprendizagem que o alimentam, mas uma crescente diferenciação. Ao se ampliar a escala de entendimento do espaço da universidade, por exemplo, para todo o Campus da Ilha do Fundão, esta diferenciação aparece no contraste entre as “ilhas de investimento” que estão cercadas por “espaços em degradação”. A tirania da lógica produtivista é tão abrangente que o prédio mais novo (e mais radioso) do campus não é um edifício pensado para a educação, mas um novo centro de pesquisa da PETROBRÁS que, em contraste com o resistente e degradado Hospital Universitário é o mais claro reflexo da espacialidade universitária que vem se consolidando nas últimas décadas. O espaço da educação cada vez mais é apropriado pelo espaço corporativo numa espécie de especulação intelectual-urbanística nos campi.
Tem sido assim, ou melhor, era assim... Mas eis que chega a greve. No momento em que se consegue romper com esta ilusória idéia do espaço público universitário devido a um entendimento por parte de seus usuários das condições concretas de seu espaço e de suas práticas sociais, cria-se a necessidade de pausa, de ruptura. Ao se compreender o caminho percorrido pelo cotidiano do trabalho acadêmico, o corpo social da universidade decide parar. A continuidade, o progresso, a marcha automática é interrompida. Este é um significado importante desta greve que não pode se perder. A pausa se deu num momento onde a reflexão se torna uma necessidade que só pode ocorrer em um tempo suspenso, em um novo espaço.
Quando o corpo universitário percebe que ele não tinha mais tempo de refletir, ele cria este tempo a partir da greve. Rapidamente, este se converte também em novas espacialidades de liberdades já anteriormente desejadas que se concretizam de forma quase sufocante: inúmeras aulas ao ar livre, assembléias, produção e exibição de filmes, debates públicos, ocupâncias de espaços que ganham e criam novas significações. Esvaziam-se as salas e se conquistam os vazios de outrora. Concomitantemente a universidade também volta à rua, grita, realiza-se enquanto luta e enquanto conquista de sua autonomia auxiliando a reconstrução do espaço público da cidade.
Estes novos espaços, por sua vez, abrigam novas práticas sociais. Critica-se, entende-se, questiona-se; a universidade passa a tomar conhecimento de si mesma, são debatidos o ensino, a pesquisa, as condições e relações de trabalho... Estudantes questionam a postura dos colegas e dos professores. Professores se reconhecem em diferentes saberes e embates, o conflito reaparece também, aliviando o silêncio anterior. Aos poucos as práticas reconquistam o rumo da autonomia universitária, possibilitando que, após a pausa, não haja um retorno à lógica anterior. A greve, aos poucos, mostra que sua conquista não se dará apenas com seu fim, mas com o resultado daquilo que o tempo ali construído coletivamente será capaz de produzir, isto é, uma renovação de idéia, da concepção do que é e do que pode ser uma universidade pública brasileira, só que agora informada pelo concreto, rompendo assim com o espaço da ilusão. O espaço público, lugar de realização da autonomia, volta a ser vislumbrado.

Cláudio Rezende Ribeiro é professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UFRJ