A greve
como renovação do espaço público universitário
Uma contradição que deve ser superada a respeito do
espaço da universidade pública brasileira reside na concepção que se faz dele,
isto é, no imaginário, no senso comum que se produziu sobre sua dinâmica de
reprodução na qual o caráter autônomo e coletivo seriam a regra. Talvez devido
à existência de inúmeros momentos combativos e de resistência que povoam a
memória coletiva com ações de estudantes e professores universitários em
momentos históricos de luta, disseminou-se a idéia de que o cotidiano do espaço
universitário seria a reprodução destes momentos de exceção numa eterna luta
constante pela conquista da autonomia democrática e cidadã. A universidade
pública seria o baluarte social de resistência ao mercado. Não que o cenário
não possa vir a ser este; até seria extremamente positivo se cada aula se
tornasse um ambiente de condução política de realização do caráter público que
reforce a emancipação contínua dos estudantes e professores. Mas, pelo contrário,
esta representação do espaço universitário não encontra eco nem em seu espaço
de representação e muito menos nas práticas sociais que lhe integram.
O espaço da universidade revela a contradição das
práticas sociais ali reproduzidas, como ocorre com qualquer outro espaço. Ao
caminhar, por exemplo, pelo edifício da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da
UFRJ que abriga, além deste curso, a Escola de Belas Artes, o Instituto de
Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional e a Reitoria da Universidade, percebe-se
claramente a cisão entre a imagem consolidada e sua realização concreta. Os
espaços de graduação, aqueles destinados à maioria dos estudantes e futuros
profissionais, encontram-se em um lento processo de transformação que evidencia
ao mesmo tempo inconstantes melhorias atropeladas por uma, cada vez mais
acelerada, degradação. Já nos espaços das diversas pós-graduações ocorrem
outros cenários que, mesmo que não sejam os ideais, demonstram uma diferença
gritante na espacialidade da universidade brasileira. Da existência de ar
condicionado, de computadores, de espaços de reunião e orientação adequados,
passando por uma movimentação constante de professores e estudantes em tempo
integral, estes espaços revelam, por oposição, a fragilidade das salas quebradas
da graduação, com suas carteiras velhas, sem instalações de mídia ou rede
digital e com poucos professores para muitos alunos... O espaço universitário
concretiza uma das mais profundas contradições que impedem que aquele
imaginário do espaço público existente se realize de forma concreta: a carreira
docente.
A forma como esta prática social, a profissão de
professor universitário público, tem se construído nas últimas décadas simula a
existência de uma meritocracia que premiaria as “produções de excelência”. Ora,
este formato mina a possibilidade de manutenção da diferença posto que o
critério do que é excelente representa uma construção social que aponta na
direção daquilo que se produz segundo os critérios da reprodução social
hegemônica. A excelência, na maioria das vezes, constrói-se em forma de
reprodução e não de transformação já que a própria existência do excelente
pressupõe seu outro, o pior (que é também o diferente), numa clara cópia da
lógica social do mercado. Assim, trata-se não de conteúdo da carreira, mas da
forma como ela é construída. A carreira docente é formatada de maneira a
resultar esta espacialidade da segregação acadêmica.
Esta característica traz um triplo impacto à prática
de ensino que ajuda a explicar seu reflexo no espaço e a partir dele.
Primeiramente, se o critério de excelência se baseia na lógica pré-existente do
mundo, há pouca possibilidade de realização de algo que contradiga a realidade
social na qual a universidade está inserida, esta ilusão da meritocracia é bastante
conhecida e não precisa ser aqui repetida a exaustão. Quem define o que é
meritório sempre terá mérito. Em segundo lugar, dado que a sociedade
capitalista se mantém a partir da centralidade da lógica do mercado que se
baseia na competição como motor de melhoria, é óbvio que o espaço universitário
irá corresponder ao espaço da competição onde a diferença se converte, na
maioria das vezes, em inferioridade, criando espaços maravilhosos que se
destacam ainda mais pela opacidade dos seus concorrentes. Em terceiro lugar, a
concretude do mercado na carreira do professor universitário converte seus
colegas em competidores muitas vezes impedindo importantes colaborações numa
clara tiranização da educação pela lógica competitiva da economia “não
política”, produzindo um espaço onde não é a troca nem a experiência educativa
de aprendizagem que o alimentam, mas uma crescente diferenciação. Ao se ampliar
a escala de entendimento do espaço da universidade, por exemplo, para todo o
Campus da Ilha do Fundão, esta diferenciação aparece no contraste entre as
“ilhas de investimento” que estão cercadas por “espaços em degradação”. A
tirania da lógica produtivista é tão abrangente que o prédio mais novo (e mais
radioso) do campus não é um edifício pensado para a educação, mas um novo
centro de pesquisa da PETROBRÁS que, em contraste com o resistente e degradado Hospital
Universitário é o mais claro reflexo da espacialidade universitária que vem se
consolidando nas últimas décadas. O espaço da educação cada vez mais é apropriado
pelo espaço corporativo numa espécie de especulação intelectual-urbanística nos
campi.
Tem sido assim, ou melhor, era assim... Mas eis que
chega a greve. No momento em que se consegue romper com esta ilusória idéia do
espaço público universitário devido a um entendimento por parte de seus
usuários das condições concretas de seu espaço e de suas práticas sociais,
cria-se a necessidade de pausa, de ruptura. Ao se compreender o caminho
percorrido pelo cotidiano do trabalho acadêmico, o corpo social da universidade
decide parar. A continuidade, o progresso, a marcha automática é interrompida.
Este é um significado importante desta greve que não pode se perder. A pausa se
deu num momento onde a reflexão se torna uma necessidade que só pode ocorrer em
um tempo suspenso, em um novo espaço.
Quando o corpo universitário percebe que ele não
tinha mais tempo de refletir, ele cria este tempo a partir da greve.
Rapidamente, este se converte também em novas espacialidades de liberdades já
anteriormente desejadas que se concretizam de forma quase sufocante: inúmeras
aulas ao ar livre, assembléias, produção e exibição de filmes, debates
públicos, ocupâncias de espaços que
ganham e criam novas significações. Esvaziam-se as salas e se conquistam os
vazios de outrora. Concomitantemente a universidade também volta à rua, grita,
realiza-se enquanto luta e enquanto conquista de sua autonomia auxiliando a
reconstrução do espaço público da cidade.
Estes novos espaços, por sua vez, abrigam novas
práticas sociais. Critica-se, entende-se, questiona-se; a universidade passa a
tomar conhecimento de si mesma, são debatidos o ensino, a pesquisa, as
condições e relações de trabalho... Estudantes questionam a postura dos colegas
e dos professores. Professores se reconhecem em diferentes saberes e embates, o
conflito reaparece também, aliviando o silêncio anterior. Aos poucos as
práticas reconquistam o rumo da autonomia universitária, possibilitando que,
após a pausa, não haja um retorno à lógica anterior. A greve, aos poucos,
mostra que sua conquista não se dará apenas com seu fim, mas com o resultado
daquilo que o tempo ali construído coletivamente será capaz de produzir, isto
é, uma renovação de idéia, da concepção do que é e do que pode ser uma
universidade pública brasileira, só que agora informada pelo concreto, rompendo
assim com o espaço da ilusão. O espaço público, lugar de realização da
autonomia, volta a ser vislumbrado.
Cláudio Rezende Ribeiro é professor da Faculdade de
Arquitetura e Urbanismo da UFRJ
Um comentário:
Cláudio,
Acompanho seu blog a partir do blog que a Fernanda escreve sobre a Mônica.
Esse seu texto me emocionou muito. Revivi com ele a greve de 1984, de que participei muito ativamente aqui na UFMG. Nosso espírito, naquela época, era bem parecido com esse que você descreve tão bem, apesar da diferença de contexto. Gostaria de divulgar seu texto para alguns colegas da UFMG. Você me permite?
Um grande abraço.
Ana Maria Figueiredo
Mãe da Fernanda Figueiredo Guimarães
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