As ironias do destino são incontáveis.
Hoje eu vivenciei uma caprichada. Em plena luta contra a privatização dos
hospitais públicos universitários que tem sido travada devido à imposição da Empresa
Brasileira de Serviços Hospitalares (EBSERH), eu tive o desgosto de me sentir
muito mal depois de uma aula e parar numa emergência de um hospital privado no
mesmo horário de uma audiência pública sobre a Empresa. Isso faz pensar... A
primeira coisa (além da dor absurda) que me vinha à cabeça era a coragem de
Florestan Fernandes, sempre apostando na saúde pública como forma, inclusive,
de protesto, revelando as melhores e piores questões de nosso sistema que
precisa de ampliações e melhorias sempre, e que nunca pode recuar.
Bem, passada a questão de auto
diminuição pela sombra de Florestan, e permanecendo a dor insuportável que me
afligia (a cara dos que me observavam me dava a certeza de que eu devia estar
parecendo o super homem do mundo bizarro com minhas contrações devido ao cálculo
renal que resolveu se mexer certamente incomodado com a EBSERH), comecei a
observar algumas questões que merecem ser colocadas aqui. Muitos dirão: veja só,
defende o hospital público e foi procurar o setor privado na hora do “vamo vê”.
Este tipo de crítica rasa eu deixo aos próprios críticos responderem, é claro,
não percamos tempo com isso agora, pois há algo mais interessante a ser
destacado. Esta vivência de hospital privado que tive hoje reforçou totalmente
minha convicção de que não podemos abrir a saúde universitária à tiranização da
lógica da eficácia, do lucro, da empresa em detrimento da lógica do uso público.
Ao mesmo tempo me mostrou formas de resistência e permanência do humano mesmo nesse
terreno pantanoso das redes hospitalares. Não é simples perceber isso, mas é
esclarecedor quando se entende.
Assim que fui recebido pela
enfermeira fui parar em uma salinha com uma cama onde fiquei aguardando atendimento
por alguns eternos 10 minutos dançando uma espécie de “kidney break dance” com
direito a moonwalking e tudo, quase um harlem shake sem música. A médica chegou
em seguida e me examinou rapidamente de forma tremendamente humana. Com isso
quero dizer que ela percebeu que a dor me incomodava muito (não foi difícil) e
me garantiu que faria tudo o mais rápido possível para cessá-la e garantir, ao
mesmo tempo, um diagnóstico correto. Prestem atenção nisso, a rapidez alegada
pela médica para sua ação que se transformou em algo realmente apressado surgiu
em função de seu entendimento de que eu, o outro ser humano naquela sala,
precisava desta urgência. Passada esta etapa, fui realizar o exame de sangue
(ainda dançando harlem shake, mas com um braço imóvel para receber a agulhada,
uma espécie de valsa pós-moderna) e em seguida fui receber os benditos analgésicos
na veia... A dor cessou. Após ser atendido por médicos e enfermeiros que
construíram uma relação humana comigo, conseguimos resolver a emergência, com o
único dolo de que eu cessei meu espetáculo dançante... Ou não, mas aí a música
que tocou começou a ser outra.
Passada esta emergência, eu
precisava receber meus exames para saber, afinal, o que tinha acontecido comigo
de forma mais detalhada. Ainda havia ansiedade, somada ao cansaço, fome e o
receio da dor voltar, etc. Mas algo deu errado. Por alguma razão de organização
logística (da eficaz rede privada, vejam só!) meus exames não chegaram onde
deveriam no tempo correto. Atrasaram, e muito. Fiquei quase uma hora e meia,
senão mais, numa sala aguardando estes resultados que não deveriam demorar mais
que vinte minutos. Como isso foi resolvido? Aí é que mora o segredo. Aí revela-se
a ameaça priivada. O sintoma é que, por alguma razão, o atendimento se
transforma de uma etapa para a outra. A lógica se altera e a construção de
humanidade que foi realizada entre a médica e os enfermeiros para comigo
cessou. De repente me vi no meio de uma empresa, perguntando no balcão o que
estava acontecendo e recebendo respostas padrão telemarketing, padrão companhia aérea, isto é, respostas que não
respondem. Além disso, não havia mais a predisposição dos funcionários em
resolver o problema para mim, pois ali eu não era mais visto como um paciente
fragilizado e preocupado, cansado, provavelmente com fome. Não, ali eu voltei a
ser visto como um número que estava aguardando alguma coisa. Ali a desumanização
imperou e eu tive que, ainda em recuperação e com aquela agulha da sonda em
minha veia, ficar insistindo, brigando para que eu fosse atendido. A saúde
perdeu lugar para a (in)eficáca do sistema, não havia mais preocupação comigo,
mas com o funcionamento de uma máquina que estava com defeito – o próprio
hospital e sua gestão – e eu era visto quase como um culpado. O caráter público
necessário para a saúde; do usuário humano que foi construído anteriormente
ruiu para o caráter privatizante, da troca, do número, do cliente, do lucro. Ali
mesmo, no território privado da saúde, a resistência humana ainda ocorre, mas não
consegue, obviamente, realizar-se plenamente, pois chega um momento em que há
poucos funcionários, os médicos se escasseiam, a saúde cede lugar para a gestão...
Passada a emergência, a eficácia gerencial permite a desumanização e a espera
incômoda e perversa de quem ainda não sabe o que teve.
Resultado em mãos, saí do
hospital com minha esposa (que garantiu humanidade o tempo todo) e topamos com
a médica que me atendeu inicialmente... Ela interrompeu seu lanche e me
perguntou como eu estava, se tinha melhorado e me ouviu contar, um tanto
agradecido, que eu já estava bem, coisa e tal. Um gesto humano, esperado e que
completou o ciclo inicial.
Assim é a lógica pública. A médica
não me olhava como um cliente, mas como um usuário, um paciente, um ser humano.
Interessava a ela saber o que aconteceu comigo, mesmo que apenas para que eu
pudesse falar um pouco de meu alívio para o médico que me atendeu. A lógica numérica,
gerencial, elimina esses contatos.
Na universidade, do mesmo modo. Quando
temos 140 alunos por semestre (4 turmas, 15h/aula/semana, três conteúdos
distintos) devido a uma lógica privatizante que assombra a universidade, sou
impedido de conhecer os estudantes de maneira mais próxima. Esta lógica na
universidade é combatida todo dia, em sala de aula, na luta para transforrmá-la
em uma arena pública onde prevalece o ensino e a aprendizagem, a descoberta, a
dúvida, o erro e o risco. Um esforço cotidiano é construir a sala de aula como um
espaço e um tempo onde não há lógica de competição, de comparação, de avaliação
vazia de conteúdo, de treinamento e, ainda mais, sem prazer. Construir o público
é uma luta contra o privado. É uma luta contra a desumanização. A luta contra a
EBSERH é isso. A Empresa é o atendimento no balcão do hospital, são os 140 por
semestre, a Universidade é a médica, é o professor aprendendo com o estudante,
é a construção do público autônomo. Entender essa diferença é importante (mas vocês
não precisam de um cálculo renal para isso, não é mesmo?).