terça-feira, 7 de maio de 2013

O cálculo versus a saúde pública


As ironias do destino são incontáveis. Hoje eu vivenciei uma caprichada. Em plena luta contra a privatização dos hospitais públicos universitários que tem sido travada devido à imposição da Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (EBSERH), eu tive o desgosto de me sentir muito mal depois de uma aula e parar numa emergência de um hospital privado no mesmo horário de uma audiência pública sobre a Empresa. Isso faz pensar... A primeira coisa (além da dor absurda) que me vinha à cabeça era a coragem de Florestan Fernandes, sempre apostando na saúde pública como forma, inclusive, de protesto, revelando as melhores e piores questões de nosso sistema que precisa de ampliações e melhorias sempre, e que nunca pode recuar.
Bem, passada a questão de auto diminuição pela sombra de Florestan, e permanecendo a dor insuportável que me afligia (a cara dos que me observavam me dava a certeza de que eu devia estar parecendo o super homem do mundo bizarro com minhas contrações devido ao cálculo renal que resolveu se mexer certamente incomodado com a EBSERH), comecei a observar algumas questões que merecem ser colocadas aqui. Muitos dirão: veja só, defende o hospital público e foi procurar o setor privado na hora do “vamo vê”. Este tipo de crítica rasa eu deixo aos próprios críticos responderem, é claro, não percamos tempo com isso agora, pois há algo mais interessante a ser destacado. Esta vivência de hospital privado que tive hoje reforçou totalmente minha convicção de que não podemos abrir a saúde universitária à tiranização da lógica da eficácia, do lucro, da empresa em detrimento da lógica do uso público. Ao mesmo tempo me mostrou formas de resistência e permanência do humano mesmo nesse terreno pantanoso das redes hospitalares. Não é simples perceber isso, mas é esclarecedor quando se entende.
Assim que fui recebido pela enfermeira fui parar em uma salinha com uma cama onde fiquei aguardando atendimento por alguns eternos 10 minutos dançando uma espécie de “kidney break dance” com direito a moonwalking e tudo, quase um harlem shake sem música. A médica chegou em seguida e me examinou rapidamente de forma tremendamente humana. Com isso quero dizer que ela percebeu que a dor me incomodava muito (não foi difícil) e me garantiu que faria tudo o mais rápido possível para cessá-la e garantir, ao mesmo tempo, um diagnóstico correto. Prestem atenção nisso, a rapidez alegada pela médica para sua ação que se transformou em algo realmente apressado surgiu em função de seu entendimento de que eu, o outro ser humano naquela sala, precisava desta urgência. Passada esta etapa, fui realizar o exame de sangue (ainda dançando harlem shake, mas com um braço imóvel para receber a agulhada, uma espécie de valsa pós-moderna) e em seguida fui receber os benditos analgésicos na veia... A dor cessou. Após ser atendido por médicos e enfermeiros que construíram uma relação humana comigo, conseguimos resolver a emergência, com o único dolo de que eu cessei meu espetáculo dançante... Ou não, mas aí a música que tocou começou a ser outra.
Passada esta emergência, eu precisava receber meus exames para saber, afinal, o que tinha acontecido comigo de forma mais detalhada. Ainda havia ansiedade, somada ao cansaço, fome e o receio da dor voltar, etc. Mas algo deu errado. Por alguma razão de organização logística (da eficaz rede privada, vejam só!) meus exames não chegaram onde deveriam no tempo correto. Atrasaram, e muito. Fiquei quase uma hora e meia, senão mais, numa sala aguardando estes resultados que não deveriam demorar mais que vinte minutos. Como isso foi resolvido? Aí é que mora o segredo. Aí revela-se a ameaça priivada. O sintoma é que, por alguma razão, o atendimento se transforma de uma etapa para a outra. A lógica se altera e a construção de humanidade que foi realizada entre a médica e os enfermeiros para comigo cessou. De repente me vi no meio de uma empresa, perguntando no balcão o que estava acontecendo e recebendo respostas padrão telemarketing, padrão companhia aérea, isto é, respostas que não respondem. Além disso, não havia mais a predisposição dos funcionários em resolver o problema para mim, pois ali eu não era mais visto como um paciente fragilizado e preocupado, cansado, provavelmente com fome. Não, ali eu voltei a ser visto como um número que estava aguardando alguma coisa. Ali a desumanização imperou e eu tive que, ainda em recuperação e com aquela agulha da sonda em minha veia, ficar insistindo, brigando para que eu fosse atendido. A saúde perdeu lugar para a (in)eficáca do sistema, não havia mais preocupação comigo, mas com o funcionamento de uma máquina que estava com defeito – o próprio hospital e sua gestão – e eu era visto quase como um culpado. O caráter público necessário para a saúde; do usuário humano que foi construído anteriormente ruiu para o caráter privatizante, da troca, do número, do cliente, do lucro. Ali mesmo, no território privado da saúde, a resistência humana ainda ocorre, mas não consegue, obviamente, realizar-se plenamente, pois chega um momento em que há poucos funcionários, os médicos se escasseiam, a saúde cede lugar para a gestão... Passada a emergência, a eficácia gerencial permite a desumanização e a espera incômoda e perversa de quem ainda não sabe o que teve.
Resultado em mãos, saí do hospital com minha esposa (que garantiu humanidade o tempo todo) e topamos com a médica que me atendeu inicialmente... Ela interrompeu seu lanche e me perguntou como eu estava, se tinha melhorado e me ouviu contar, um tanto agradecido, que eu já estava bem, coisa e tal. Um gesto humano, esperado e que completou o ciclo inicial.
Assim é a lógica pública. A médica não me olhava como um cliente, mas como um usuário, um paciente, um ser humano. Interessava a ela saber o que aconteceu comigo, mesmo que apenas para que eu pudesse falar um pouco de meu alívio para o médico que me atendeu. A lógica numérica, gerencial, elimina esses contatos.
Na universidade, do mesmo modo. Quando temos 140 alunos por semestre (4 turmas, 15h/aula/semana, três conteúdos distintos) devido a uma lógica privatizante que assombra a universidade, sou impedido de conhecer os estudantes de maneira mais próxima. Esta lógica na universidade é combatida todo dia, em sala de aula, na luta para transforrmá-la em uma arena pública onde prevalece o ensino e a aprendizagem, a descoberta, a dúvida, o erro e o risco. Um esforço cotidiano é construir a sala de aula como um espaço e um tempo onde não há lógica de competição, de comparação, de avaliação vazia de conteúdo, de treinamento e, ainda mais, sem prazer. Construir o público é uma luta contra o privado. É uma luta contra a desumanização. A luta contra a EBSERH é isso. A Empresa é o atendimento no balcão do hospital, são os 140 por semestre, a Universidade é a médica, é o professor aprendendo com o estudante, é a construção do público autônomo. Entender essa diferença é importante (mas vocês não precisam de um cálculo renal para isso, não é mesmo?).

Um comentário:

Anônimo disse...

Concordo que o contato humano, não só no caso da medicina, é essencial para o desenvolvimento e a "validação" de suas atividades. Contudo, creio que o buraco seja mais em baixo. Os hospitais públicos, universitários ou não, tem pessoas que demandam outras pessoas, mas carecem de equipamentos. Tal fato desumaniza esse profissional, que tem que lidar com a sua incapacidade perante a falta de recursos(o que a medica faria com você agonizando de dor sem ter um analgésico?).
Sim, o acesso à qualidade dos serviços tende a aumentar com o investimento privado, já que ele exige lucro. E sim, pessoas sem dinheiro ficariam a mercê num sistema exclusivamente privado.
Tem como associar os dois? Seria uma solução?