“Antes totalmente
irresponsáveis, as massas hoje são capazes de compreender e decidir
tudo. Iluminada pela violência, a consciência do povo se rebela
contra toda pacificação. Os demagogos, os oportunistas, os mágicos
tem, a partir de então, uma tarefa difícil.” (FANON, 1961, p.91,
tradução minha1)
Quando
Frantz Fanon terminou de escrever os “Os condenados da terra”, em
1961, no contexto das lutas de libertação da Argélia, teve sua
obra censurada na democrática França, mesmo tendo sido o livro
prefaciado pelo mais francês dos acadêmicos do Quartier Latin.
Fanon, psicanalista e psiquiatra2
de formação, percebe, a partir do acompanhamento de muitos
pacientes franceses e argelinos, soldados e vítimas dos soldados,
que a violência estava necessariamente posta no contexto colonial e,
a partir desta categorização, denuncia a farsa de que apenas os
resistentes eram violentos. Seu livro contém, em seu primeiro
capítulo De la violence uma
defesa da violência praticada pelas forças de libertação argelina
contra um estado praticante de inúmeras outras formas de violência,
do racismo à tortura, que eram naturalizadas pelo contexto da
colonização.
Esta defesa de Fanon não pode ser vista como uma absolutização
gratuita de gestos agressivos entre diferentes corpos; a violência
de Fanon é mais fértil quando compreendida como um conceito
retirado de uma categorização do cotidiano agressivo da
colonização. Ela é, em Fanon, uma proteção à ação do
oprimido, que sempre será denunciado como violento por aquele que,
violentamente, o oprime.
Ora, sendo ela, como afirma Fanon, uma condição de dada sociedade,
é esperado que haja, portanto, seus traços na espacialidade que a
partir dela é produzido. Mas como identificar a violência na
produção do espaço? O senso comum logo identifica as ações de
revolta como seu representante ideal: quebra-quebra, empurra-empurra,
“vandalismo”, gritaria, pichações, ocupações. Marcas da
violência seriam, assim, formas de desordem que transformam a
normalidade da conformação hegemônica da cidade.
O
senso comum, no entanto, não é despido ele próprio de violência.
Observemos, portanto, o espaço brasileiro com mais cautela para
compreendermos formas que teriam a capacidade de desvelar um contexto
semelhante ao exposto por Fanon no caso argelino. Formas que se
concretizam, principalmente, em ausências. Como identificar
elementos de violência permanentes no espaço brasileiro que
demonstrem que o senso comum apenas percebe um lado da violência, a
reação do oprimido, deslegitimando-a em nome da paz e da ordem,
segundo as regras de conduta que produzem o mesmo senso comum?
Uma
das maneiras é através do entendimento de que espaço é
concretização de história, isto é, não se produz espaço sem
tempo. Ora, se o espaço é história, é também escolha e é também
disputa. A permanência de elementos simbólicos na paisagem urbana,
por exemplo, não está despida de violência. Muito pelo contrário,
no caso brasileiro o espaço se reproduz sob o signo do silenciamento
das vozes oprimidas, do sumiço das marcas das revoltas, de Alufá
Licutã aos desclassificados do ouro,
passando pela revolta da Chibata e suas pedras pisadas do cais.
Agressivamente se produziu o silêncio na paisagem urbana, negando as
lembranças de lutas várias, reproduzindo uma espacialidade sem
conflito, simulacro de ordem como coerência: o espaço cordial. A
cordialidade, como se sabe, é atributo da ruralidade, não é
característica da cidade enquanto essência, isto é, enquanto lugar
do encontro das diferenças, espaço do dissenso, da negociação, do
conflito. A espacialidade brasileira urbana se reproduz forjando uma
ruralidade na metrópole brutal. Reforça o silêncio em sua
reprodução e, como tal, constitui uma falsa idéia de que a
normalidade, a neutralidade, a tradição é a aceitação ordeira da
realidade.
Ora, não pode a Universidade exercer ação de manutenção desta
ruralidade, entendida aqui como condição de permanência da
colonialidade. A universidade deve exercer, ensinando e aprendendo, a
discordância enquanto método de sua manutenção e riqueza de sua
existência. Necessariamente pública, a universidade não se realiza
a partir da construção de esferas de iguais, de fóruns
consensuais, de agravamento de violências que, como se sabe, são
inúmeras: de gênero, de raça, de cor, de idade, de hierarquia de
saber. É necessário que a universidade construa, cotidianamente,
espaços de denúncia da violência silenciosa da “normalidade”.
A sala de aula não pode reproduzir a violência do autoritarismo,
nem da negação da autonomia. A pesquisa não pode reproduzir a
violência da heteronomia de saberes. À extensão, cabe denunciar a
noção de dominação de um saber popular por um outro dito erudito.
Da mesma maneira, os colegiados, congregações e conselhos devem
denunciar a violência histórica que silenciou aqueles que lutaram
pela democracia em tantos momentos pretéritos; devem permitir a
polifonia da expressão do protesto, renovando, inclusive, a forma de
protestar. Os conselhos não podem ser disfarçados em espaços de
neutralidade quando a violência está dada em nossa história.
Devem, muito pelo contrário, constituir-se como espaços de
experimentação de democracias, fomentando cada vez mais vozes que
expressem suas reações às violências!
Se aqueles que gritam, que dançam, que cantam e que argumentam com
rigor e coerência o fazem pela garantia da autonomia, e não pela
intencionalidade de calar e oprimir, que o espaço da universidade
seja o local de sua realização plena: o CONSUNI da UFRJ não pode
se transformar em um incidente de autoritarismo, sua tarefa é
ampliar a realização da democracia.
Cláudio Rezende Ribeiro
Professor Adjunto e, portanto, Estudante da FAU-UFRJ
Conselheiro da ADUFRJ-SSind
1
FANON, Frantz. Les Damnés
de la terre. Paris: La Découverte. 2002 (1961). 311p.
2
Imagino que ele teve a oportunidade de se formar em um bom
hospital universitário público, já que o governo francês, ainda
que colonialista e imperialista, não se arriscou a entregar os
serviços públicos a uma EFSERH.