quarta-feira, 11 de setembro de 2013

CONDIÇÕES DE REALIZAÇÃO DA DEMOCRACIA: O CONSUNI, O SILÊNCIO E A VIOLÊNCIA.


Antes totalmente irresponsáveis, as massas hoje são capazes de compreender e decidir tudo. Iluminada pela violência, a consciência do povo se rebela contra toda pacificação. Os demagogos, os oportunistas, os mágicos tem, a partir de então, uma tarefa difícil.” (FANON, 1961, p.91, tradução minha1)

Quando Frantz Fanon terminou de escrever os “Os condenados da terra”, em 1961, no contexto das lutas de libertação da Argélia, teve sua obra censurada na democrática França, mesmo tendo sido o livro prefaciado pelo mais francês dos acadêmicos do Quartier Latin. Fanon, psicanalista e psiquiatra2 de formação, percebe, a partir do acompanhamento de muitos pacientes franceses e argelinos, soldados e vítimas dos soldados, que a violência estava necessariamente posta no contexto colonial e, a partir desta categorização, denuncia a farsa de que apenas os resistentes eram violentos. Seu livro contém, em seu primeiro capítulo De la violence uma defesa da violência praticada pelas forças de libertação argelina contra um estado praticante de inúmeras outras formas de violência, do racismo à tortura, que eram naturalizadas pelo contexto da colonização.
Esta defesa de Fanon não pode ser vista como uma absolutização gratuita de gestos agressivos entre diferentes corpos; a violência de Fanon é mais fértil quando compreendida como um conceito retirado de uma categorização do cotidiano agressivo da colonização. Ela é, em Fanon, uma proteção à ação do oprimido, que sempre será denunciado como violento por aquele que, violentamente, o oprime.
Ora, sendo ela, como afirma Fanon, uma condição de dada sociedade, é esperado que haja, portanto, seus traços na espacialidade que a partir dela é produzido. Mas como identificar a violência na produção do espaço? O senso comum logo identifica as ações de revolta como seu representante ideal: quebra-quebra, empurra-empurra, “vandalismo”, gritaria, pichações, ocupações. Marcas da violência seriam, assim, formas de desordem que transformam a normalidade da conformação hegemônica da cidade.
O senso comum, no entanto, não é despido ele próprio de violência. Observemos, portanto, o espaço brasileiro com mais cautela para compreendermos formas que teriam a capacidade de desvelar um contexto semelhante ao exposto por Fanon no caso argelino. Formas que se concretizam, principalmente, em ausências. Como identificar elementos de violência permanentes no espaço brasileiro que demonstrem que o senso comum apenas percebe um lado da violência, a reação do oprimido, deslegitimando-a em nome da paz e da ordem, segundo as regras de conduta que produzem o mesmo senso comum?
Uma das maneiras é através do entendimento de que espaço é concretização de história, isto é, não se produz espaço sem tempo. Ora, se o espaço é história, é também escolha e é também disputa. A permanência de elementos simbólicos na paisagem urbana, por exemplo, não está despida de violência. Muito pelo contrário, no caso brasileiro o espaço se reproduz sob o signo do silenciamento das vozes oprimidas, do sumiço das marcas das revoltas, de Alufá Licutã aos desclassificados do ouro, passando pela revolta da Chibata e suas pedras pisadas do cais. Agressivamente se produziu o silêncio na paisagem urbana, negando as lembranças de lutas várias, reproduzindo uma espacialidade sem conflito, simulacro de ordem como coerência: o espaço cordial. A cordialidade, como se sabe, é atributo da ruralidade, não é característica da cidade enquanto essência, isto é, enquanto lugar do encontro das diferenças, espaço do dissenso, da negociação, do conflito. A espacialidade brasileira urbana se reproduz forjando uma ruralidade na metrópole brutal. Reforça o silêncio em sua reprodução e, como tal, constitui uma falsa idéia de que a normalidade, a neutralidade, a tradição é a aceitação ordeira da realidade.
Ora, não pode a Universidade exercer ação de manutenção desta ruralidade, entendida aqui como condição de permanência da colonialidade. A universidade deve exercer, ensinando e aprendendo, a discordância enquanto método de sua manutenção e riqueza de sua existência. Necessariamente pública, a universidade não se realiza a partir da construção de esferas de iguais, de fóruns consensuais, de agravamento de violências que, como se sabe, são inúmeras: de gênero, de raça, de cor, de idade, de hierarquia de saber. É necessário que a universidade construa, cotidianamente, espaços de denúncia da violência silenciosa da “normalidade”.
A sala de aula não pode reproduzir a violência do autoritarismo, nem da negação da autonomia. A pesquisa não pode reproduzir a violência da heteronomia de saberes. À extensão, cabe denunciar a noção de dominação de um saber popular por um outro dito erudito. Da mesma maneira, os colegiados, congregações e conselhos devem denunciar a violência histórica que silenciou aqueles que lutaram pela democracia em tantos momentos pretéritos; devem permitir a polifonia da expressão do protesto, renovando, inclusive, a forma de protestar. Os conselhos não podem ser disfarçados em espaços de neutralidade quando a violência está dada em nossa história. Devem, muito pelo contrário, constituir-se como espaços de experimentação de democracias, fomentando cada vez mais vozes que expressem suas reações às violências!
Se aqueles que gritam, que dançam, que cantam e que argumentam com rigor e coerência o fazem pela garantia da autonomia, e não pela intencionalidade de calar e oprimir, que o espaço da universidade seja o local de sua realização plena: o CONSUNI da UFRJ não pode se transformar em um incidente de autoritarismo, sua tarefa é ampliar a realização da democracia.


Cláudio Rezende Ribeiro
Professor Adjunto e, portanto, Estudante da FAU-UFRJ
Conselheiro da ADUFRJ-SSind


1 FANON, Frantz. Les Damnés de la terre. Paris: La Découverte. 2002 (1961). 311p.

2 Imagino que ele teve a oportunidade de se formar em um bom hospital universitário público, já que o governo francês, ainda que colonialista e imperialista, não se arriscou a entregar os serviços públicos a uma EFSERH.

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