Futebol não é um esporte dualista. Coisa
rara, no futebol o empate é válido. Há sempre uma terceira opção
e, ao contrário do que pensam os dualistas de plantão, o empate nem
sempre significa a mesma coisa para os times em campo: pode ser ruim
para ambos, bom para ambos e pode, inclusive, privilegiar apenas um
dos times... Não é à toa que o futebol se tornou o esporte
preferido da maioria das nações modernas, sua complexidade se
ancora na dificuldade da realidade concreta: o futebol é o esporte
contraditório por excelência!
Junte-se a isso, numa combinação
infinita de contradições, que jogamos futebol falando português, a
contraditória língua menos ordeira que há, ou, dito de outro modo,
a língua que é ordeira pouca, contraditória muita, ou ainda a
contradição em forma de língua que não acata ordens e nem tem
ordens acatadas e por aí vai como sabemos com ou sem vírgula ou
ponto final
A língua portuguesa não é dual. E
uma das coisas que ela nos traz e trás e trai é uma confusão
fantástica entre os verbos: ser, estar e ter. Ser e estar, por
exemplo, apresenta a dialética do tempo que o to be e
o être sempre
invejarão, essa separação
entre duas coisas inseparáveis, afinal como podemos ser sem estar?
Talvez apenas em português, ou jogando futebol. Jogar futebol é
falar português com a bola (menos para a seleção alemã, logo
ela)!
Mas
como somos mais desordeiros, como somos mais futebol ao falar e nossa
escrita se concretiza é lá,
no som
da língua falada da rua,
o verbo ter também complica
o meio de campo da relação
com o ser...e com o estar.
Por um lado, o ter
escrito
significa possuir,
ter remete ao acúmulo, ter remete a quantidade: “é melhor...ter”,
diz a propaganda do banco.
Nossa
língua, no entanto,
faz o encontro do ter com o ser, mas
não pelo viés óbvio da colocação da quantidade acima de todas as
coisas... Para
nós, ao falarmos, a
realização de algo é vista como a posse do estar: vai ter? Ou não
vai ter? Poderíamos perguntar: Poderei estar lá? Ou não? Ter ou
não ter um acontecimento remete à sua forma de realização, à
sua concretude de ser: possuir a existência.
Afinal, vai ter Copa? Afinal, vai ser Copa? Estaremos em uma Copa ou
não? Isso que vai ter,
afinal, é? Ou não e?
Os
dualistas insistem que ela acontecerá. Insistem que, sim, vai ter
Copa! Mas o
que haverá, pelo
contrário, será
a Copa do ter. Não estaremos
em uma Copa do Mundo de Futebol. O que vai ocorrer aqui é a Copa do
Mundo da Fifa: a que tem as coisas, e
ter, aqui, é
no sentido de acumular, no
sentido escrito, do projeto, do contrato, do negócio.
A Copa das Acumulações.
Aquilo
que vai ter será a realização do esvaziamento do futebol, não
apenas do esporte, mas do sentido vital que ele carrega. O
futebol da quantidade substitui o da qualidade. O futebol de troca ao
invés do futebol de uso; a impossibilidade do futebol arte, ou
melhor, o futebol arte de galeria negando o futebol-grafite, matando
o futebol-pixo.
É bom
lembrar que o esporte, aqui
no Brasil, era praticado por times que não somavam 11, mas 12, pois
a partida sempre foi jogada também
pela torcida. O nosso
futebol, quando tinha, quando era, estava sempre inserido em um
espaço que transcendia as quatro linhas: por isso era preciso
estádios imensos, que coubessem cada vez mais pessoas para que o
jogo fosse jogado por muitos e muitos. O futebol agora depende apenas
de quem está dentro das quatro linhas (as
linhas do televisor): é
ordeiro, a torcida foi expulsa e seu lugar foi ocupado por
espectadores, inclusive no
estádio: por acaso Debord
anunciou o futebol do espetáculo?
Por
isso, há menos de uma semana do evento, não tenho medo em insistir
que não vai ter Copa. Como dizem por aí, já não houve. E me
desculpem os dualistas, mas este grito não é só contra você e nem
contra o único inimigo que você consegue enxergar, esse grito é a
favor da festa que ambos, empatados, mataram com a repressão.
Daqui
a um mês estaremos em um país que terá passado por um evento que
não houve, que não foi, que não esteve... Mas só quem sabe o
futebol da língua portuguesa é que vai conseguir entender isso
plenamente
e, para aqueles que não falam mais essa língua, ou
que a esqueceram, o melhor
lugar de reaprendê-la,
como sempre, é na rua. E é
lá que o nosso futebol será jogado, falado. Traduzindo:
lá vai ter muita
luta, pois não vai ser Copa!
2 comentários:
Muito ruim este texto!
Que texto sensacional! Parabéns por essa mistura de arte, crítica, filosofia [e desculpe-me se não foi nada disso].
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