domingo, 8 de junho de 2014

Não vai ser Copa!


Futebol não é um esporte dualista. Coisa rara, no futebol o empate é válido. Há sempre uma terceira opção e, ao contrário do que pensam os dualistas de plantão, o empate nem sempre significa a mesma coisa para os times em campo: pode ser ruim para ambos, bom para ambos e pode, inclusive, privilegiar apenas um dos times... Não é à toa que o futebol se tornou o esporte preferido da maioria das nações modernas, sua complexidade se ancora na dificuldade da realidade concreta: o futebol é o esporte contraditório por excelência!
Junte-se a isso, numa combinação infinita de contradições, que jogamos futebol falando português, a contraditória língua menos ordeira que há, ou, dito de outro modo, a língua que é ordeira pouca, contraditória muita, ou ainda a contradição em forma de língua que não acata ordens e nem tem ordens acatadas e por aí vai como sabemos com ou sem vírgula ou ponto final
A língua portuguesa não é dual. E uma das coisas que ela nos traz e trás e trai é uma confusão fantástica entre os verbos: ser, estar e ter. Ser e estar, por exemplo, apresenta a dialética do tempo que o to be e o être sempre invejarão, essa separação entre duas coisas inseparáveis, afinal como podemos ser sem estar? Talvez apenas em português, ou jogando futebol. Jogar futebol é falar português com a bola (menos para a seleção alemã, logo ela)!
Mas como somos mais desordeiros, como somos mais futebol ao falar e nossa escrita se concretiza é lá, no som da língua falada da rua, o verbo ter também complica o meio de campo da relação com o ser...e com o estar. Por um lado, o ter escrito significa possuir, ter remete ao acúmulo, ter remete a quantidade: “é melhor...ter”, diz a propaganda do banco.
Nossa língua, no entanto, faz o encontro do ter com o ser, mas não pelo viés óbvio da colocação da quantidade acima de todas as coisas... Para nós, ao falarmos, a realização de algo é vista como a posse do estar: vai ter? Ou não vai ter? Poderíamos perguntar: Poderei estar lá? Ou não? Ter ou não ter um acontecimento remete à sua forma de realização, à sua concretude de ser: possuir a existência. Afinal, vai ter Copa? Afinal, vai ser Copa? Estaremos em uma Copa ou não? Isso que vai ter, afinal, é? Ou não e?
Os dualistas insistem que ela acontecerá. Insistem que, sim, vai ter Copa! Mas o que haverá, pelo contrário, será a Copa do ter. Não estaremos em uma Copa do Mundo de Futebol. O que vai ocorrer aqui é a Copa do Mundo da Fifa: a que tem as coisas, e ter, aqui, é no sentido de acumular, no sentido escrito, do projeto, do contrato, do negócio. A Copa das Acumulações.
Aquilo que vai ter será a realização do esvaziamento do futebol, não apenas do esporte, mas do sentido vital que ele carrega. O futebol da quantidade substitui o da qualidade. O futebol de troca ao invés do futebol de uso; a impossibilidade do futebol arte, ou melhor, o futebol arte de galeria negando o futebol-grafite, matando o futebol-pixo.
É bom lembrar que o esporte, aqui no Brasil, era praticado por times que não somavam 11, mas 12, pois a partida sempre foi jogada também pela torcida. O nosso futebol, quando tinha, quando era, estava sempre inserido em um espaço que transcendia as quatro linhas: por isso era preciso estádios imensos, que coubessem cada vez mais pessoas para que o jogo fosse jogado por muitos e muitos. O futebol agora depende apenas de quem está dentro das quatro linhas (as linhas do televisor): é ordeiro, a torcida foi expulsa e seu lugar foi ocupado por espectadores, inclusive no estádio: por acaso Debord anunciou o futebol do espetáculo?
Por isso, há menos de uma semana do evento, não tenho medo em insistir que não vai ter Copa. Como dizem por aí, já não houve. E me desculpem os dualistas, mas este grito não é só contra você e nem contra o único inimigo que você consegue enxergar, esse grito é a favor da festa que ambos, empatados, mataram com a repressão.

Daqui a um mês estaremos em um país que terá passado por um evento que não houve, que não foi, que não esteve... Mas só quem sabe o futebol da língua portuguesa é que vai conseguir entender isso plenamente e, para aqueles que não falam mais essa língua, ou que a esqueceram, o melhor lugar de reaprendê-la, como sempre, é na rua. E é lá que o nosso futebol será jogado, falado. Traduzindo: lá vai ter muita luta, pois não vai ser Copa!

2 comentários:

Anônimo disse...

Muito ruim este texto!

Fabiano disse...

Que texto sensacional! Parabéns por essa mistura de arte, crítica, filosofia [e desculpe-me se não foi nada disso].